domingo, 2 de setembro de 2007

A feira do 27

Tenho um particular orgulho por ter nascido numa aldeia com feira. Se bem que mensal, a feira do 27, assim baptizada por se realizar todos os 27 do mês, concedia-nos um estatuto superior; depois da Vila, a nossa aldeia era a única do concelho que tinha uma feira. Todos os meses, tinhamos assim direito a um feriado suplementar, pois em dia de feira não se trabalhava. Além do feriado suplementar, tinhamos ainda direito a 5 coroas, e se calhasse num domingo, a mesada duplicava.
Saía de casa com cinco escudos, passava em casa dos meus avós para outros cinco, e por vezes o meu padrinho também contribuía, uma vez deu-me mesmo vinte paus, penso que já tinha emborcado uns copos de jacquez. Com 10 ou 20 paus no bolso e a tarde toda pela frente, a feira do 27 era para nós, entre 1970 e 75, a mesma coisa que hoje o Colombo em fim de semana de salário para os funcionários das finanças de Benfica.
Depois de uma volta pelas tendas de trapos, botando figura com uma gasosa na mão, e uma visita à feira do gado, onde se comprava e vendia vacas, ovelhas, porcos e galinhas, chegava o primeiro momento alto da feira do 27: a visita à rosqueira, para comprar rosquitos e massapães; na tasca ao lado, comprávamos uma caneca de dois litros com duas gasosas, duas cervejas e o resto de vinho tinto. Era-mos quatro ou cinco garotos da mesma idade, refugiávamo-nos num recanto do monte adjacente, comendo e bebendo; depois enquanto um vigiava, partilhava-mos um ou dois cigarritos surripiados ao pai ou irmão mais velho.
Invariavelmente, já no fim da tarde, chegava a vez de uma das atracções mais esperadas : a venda de um remédio miraculoso, vulgo banha da cobra. O vendedor, cujo talento agregava à volta do palco improvisado uma multidão considerável, começava por descrever casos verídicos de pessoas que após ingurgitar a mistela apregoada, tinham expulsado ora pela boca, ora pelo cu, a enorme “bicha”, não de um, não de dois, não de três, mas de cinco, e até! 10metros, e agitava a prova na mão – um frasco com uma coisa amarelada enrolada. A bicha, repetia o vendedor, que pode estar alojada em qualquer um de nós, se não for expulsa, vai-nos comendo as entranhas, crescendo à medida que nós enfezamos. Felizmente, o remédio para expulsar a danada, que, lembrem-se, pode estar dentro de todos nós, existe. E não só existe, como hoje, especialmente para o povo da Valinha, está aqui ao alcance de todos. Por 10 escudos, leva, não uma, não duas, mas três bisnagas. O povo, acotovelando-se, lá se chegava ao palco improvisado para comprar a mistela.
Nós, os miúdos, afastávamo-nos em silêncio. É que a bicha, da forma que nos fora apresentada, assustava; e se tivéssemos uma dentro de nós, já com um metro? Com o correr do tempo, poderia crescer até aos 5 ou dez metros apregoados pelo vendedor. Cada um, regressando a casa, procurava possíveis indícios da existência da bicha, e eram algumas as noites mal dormidas a cogitar no assunto. Alguns dias depois, a situação voltava ao normal, até à próxima feira do 27.

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